Carta da Narcisa a Mim.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2010
Minha querida. Sim, não te espantes nem te habitues. Hoje permito-me tratar-se assim. Tenho constatado que os teus dias não têm sido fáceis. Ou sequer bem digeridos. Ontem á noite pensei nisso. Com os cigarros que fumas e com o stress que diariamente se passeia em ti, tenho receio que não dures muito tempo. Pelo menos, dura o tempo suficiente para que não me deixes sozinha, sim? Sempre consegues trazer-me alguma paz. É verdade. Desconfio que há muito que o sabes.
Hoje escrevo-te para te dizer que o teu principal problema é o de outros tantos. És um ser emocional. O descarrilar do comboio começa aqui.
Houve um tempo em que concorrias de forma bastante inteligente e credível com a minha racionalidade. Ainda pensei que juntas poderíamos ser grandes. Sim, nesse tempo, admirei-te. E muitas vezes olhei para ti deliciada e embevecida. Depois abandonaste-te ao percurso vulgar dos mortais. Sucumbiste à emoção. À operação que te abriu o coração. Expuseste-te. E ficaste com uma taça cheia de estilhaços. Bem feita. Avisei-te. Quantas vezes, sentei-me a teu lado e pedi-te a consciência de saberes o que estavas a arriscar? Quantas? Não foram poucas. Julgaste-te guerreira. Acho que em determinadas alturas, até te julgaste melhor do que os outros. A emoção deturpa o mais nobre dos pensamentos. Devias ter ficado no caminho que juntas partilhámos. Os prazeres da carne. Era aqui que te devias ter mantido. Ainda podes. O que não falta é carne para te alimentares. Se quiseres, trago-te de novo para essa realidade. E poderás desfrutar. do melhor que a vida te oferece. Prazer. Em bruto. Quantas vezes o quiseres. Sem filas de espera. Sem reclamações. As palavras não existem. Só se ouve os efeitos da satisfação. Não tens saudades desses tempos gloriosos? Do vício plantado no sexo das mulheres? Não, se calhar não. Preferiste plantar corações que morrem atrás de cada desilusão. Ilusão. Frustração.
Escolheste mal a batalha. O amor nunca te será fiel. Aí, não terás nenhum troféu. Nada de te é garantido. Tens sempre de dar. Para que quem o recebe não perceba que existe algo melhor lá fora. Porque haverá sempre algo melhor. É uma batalha condenada à partida. Excepções? As que ousei admitir, revelaram-se tempo depois como fracassos. Gostava de te abraçar. Sei que precisas. E agora pergunto-te: não tens saudades do tempo em que não precisavas desse gesto? Deves ter. Como podes não ter? As regras eram feitas por ti. Dormias a noite toda ou fodias horas a fio. Continuavas a não sonhar. Mas também não tinhas pesadelos. O que eu gostava de ti naquela altura. Agora, nem te consigo reconhecer nesse estado. Não pareces tu. De coração aberto. Lamento dizer-te, mas tenho pena de ti. Devias ter mantido a descrência que até te dava alguma graça. Devias ter-te mantido aparte. Devias.
E agora enquanto eu chego a casa de madrugada com o perfume de uma mulher qualquer ou duas, vejo-te sentada a fumar e a pensar. Que tanto tu pensas? Já sei que deixaste de falar comigo. Sim. São mais as diferenças que as semelhanças entre nós. Lamento.
Arrisco a conceder-te um conselho. Mesmo que tu adoptes a postura altiva e reclames dizendo que não precisas de conselhos de ninguém. Sim, mesmo que batas com o pé.
Abandona o teu coração no meio da rua. Antes de o deixares ao desdém, parte-o aos bocados para que mais ninguém o consiga reconstruir.
E depois bate-me à porta e eu saberei aceitar-te de volta. E ensinar-te-ei tudo o que te esqueceste quando escolheste o Amor. A partilha. A paixão. A descida ao inferno.
Não te irás arrepender.
Narcisa D'Almeida.