quarta-feira, 1 de setembro de 2010

.93

Eu deveria ter menos de cinco anos. Conheci-te a ti e ao teu filho através da tua mulher. Que conhecia a minha mãe. Eu lembro-me que gostava muito de televisão. E de desenhos animados. E de tudo o que era da Disney. Revivia todas as histórias como se eu fosse a personagem principal. E ria quando era para rir e chorava quando era para chorar. Provavelmente a minha pontinha (pequenina) de depressão e romantismo vem dessas coisas que via quando era pequenina. Eu não sei em que altura acontecia. Se era durante as férias ou se depois da escola. Talvez aos fins-de-semana. Tu trabalhavas sempre à noite, portanto, é que cuidavas do teu filho durante o dia. Comecei a frequentar a tua casa. O motivo seria ver os filmes com o teu filho. E durante muito tempo assim foi. Depois acho que deixei de ver o teu filho na sala connosco. Não me lembro dos pormenores. Ou talvez o que mais me lembre sejam mesmo os pormenores. A imagem é estar sentada no teu colo. Tu afastavas as minhas cuequinhas e tocavas-me. Eu lembro-me que gostava. Quando tu perguntavas: gostas? Eu respondia: faz cócegas. E tu voltavas a perguntar: mas é bom? e eu respondia: sim. Não sei quanto tempo durou. Não sei. O ritual era sempre esse. Eu sentava-me ao teu colo, tu afastavas-me as cuecas e tocavas-me. Não sei quanto tempo durava esse momento e não sei quanto tempo durou em termos circunstanciais. Acho que um dia a tua mulher entrou na sala e presenciou aquele momento repetitivo. Não sei se é da minha cabeça ou se de facto a vi, ali. Chocada. A olhar para o marido dela a tocar no sexo de uma menina de menos de cinco anos. Deixei de querer lá ir. Comecei a sentir nojo mesmo sem perceber o que era sentir nojo. Sentia-me culpada porque a sensação era boa. Portanto eu era culpada. Não aquele ser. Não. Só falei neste assunto anos mais tarde. Porque a minha mãe perguntou-me se tinha mesmo acontecido. Veio-me tudo à memória. Tudo.

Dez mais tarde, tinha eu 15 nós mudamos de casa. Saímos dali. Deixei de o ver. Sim, porque eu costumava vê-lo, e à mulher e ao filho e cumprimentá-los. Era algo automático. Eram vizinhos. Os meus pais estavam comigo. Eu tinha que cumprimentá-los. No dia em que deixei de os ver de forma tão presente, respirei fundo e esqueci-me. Do que se tinha passado. De vez em quando recordo-me. E lembro-me de tudo. Já sei que não tenho culpa. Sei que a culpa é dele. Da mulher. Sei que nunca mais consegui identificar-me com nada da Disney. Sei que não consigo voltar à antiga casa. Sem de longe ver o caminho que percorria entre a minha casa e a dele. Não, não tenho culpa. Tem ele. Não o odeio. Já o perdoei. Não lhe desejo mal ou que morra lentamente a esvair-se de sangue. Não. Já o perdoei. Só queria que fosse possível apagar aquele tempo da minha memória. Só isso. Para que desta forma os sonhos existissem de forma natural em mim e não voltassem porque alguém me fez acreditar de novo. Não. Queria que os sonhos fossem meus. E não por inerência. Pelo poder de alguém ter conseguido me retirar um pouco da pele da podridão e me ter feito sonhar. Porque depois, se a pessoa vai embora, os sonhos também vão. E aqui estou. Novamente com a sensação que nunca terei qualquer controlo sobre os meus sonhos porque eles mais cedo ou mais tarde vão embora. E eu não terei forma de voltar a acreditar. Que é possível ser feliz de coração aberto.

1 comentário: