Espreito Lisboa ao anoitecer pela janela. É um hábito. Uma obrigação que me foi imposta pela vida. Primeiro obriguei-me. Depois habituei-me. Respiramos de outra forma quando aprendemos a olhar o que nos rodeia. Costumo parar mais segundos nas árvores. Gostaria de ter tido uma casa numa árvore. Seria o espaço perfeito para me entregar à solidão. Dificilmente deixaria alguém entrar. Não porque assim o decidisse mas porque a solidão quando aceite por escolha não deixa portas abertas. E eu desde muito cedo que gosto de portas fechadas. Se entreabertas, eu não consigo ficar em paz. São como os livros que não acabo de ler. As folhas que ficaram por ser tocadas não me deixam em paz. É uma tortura. E a minha vida hoje é assim. Cheia de portas abertas. Cheia de páginas escritas por ler. Existe um intermédio em mim que não é vivido. Onde a vida parou. Como se fosse um segredo que não pousasse de ouvido em ouvido.
Há uma ligação entre Lisboa e o que sou. Senão tivesse vindo estudar para Lisboa não seria quem sou. Não sei quem seria. Se calhar, seria melhor pessoa. Lisboa mostrou-me o mundo. Sim, penso ter sido isso. Lisboa é mais mundo que muitas outras cidades. Mas também é mais triste. Tornei-me mais triste em Lisboa mas menos deprimida. Antes de vir para Lisboa achava que todos os dramas do mundo passavam por mim. Eu estava no centro. Anos depois, descobri que era ingenuidade. Anos antes, chamava isso de egocentrismo. Ingénuo é aquele que acha que o mundo corre em seu redor. Era isso que eu era. Ingénua. Lisboa pegou na minha mão e mostrou-me porta à porta. Rua a ruela. Pessoa a pessoa. Desfez-me muitas ilusões. Acordou-me. Essa é a melhor expressão. Antes queria acordar mas foi preciso chegar a Lisboa para acordar. E não acordei logo. Não. Atravessei um percurso. E depois acordei e foi nesse ponto geométrico que me tornei eu. Certo dia, não consigo dizer ao certo quando, senti que esta seria a cidade onde poderia morrer. Não que quisesse morrer já. Mas poderia morrer cá. De olhos no rio. Penso que esta visão seja oriunda do meu romantismo entediado e escondido. Não obstante a certeza da morte, quero viver ainda muito. Talvez porque sinta que na maior parte do tempo eu não vivo, eu sobrevivo. Dentro de mim, é o que tenho vindo a constantar. Há um certo desencanto enraizado em mim que me tem vindo a afastar da vida. Uma sensação de desapego pelas coisas. Não é um drama. Os dramas resolvem-se não nos matam. Por vezes, sentimos que estamos perto do abismo. Mas é um pensamento errado esse. Mais cedo ou mais tarde iremos tomar consciência desse facto. A capacidade de alistarmos dramas na nossa vida é uma das diferenças entre nós e outros animais. Vejamos, basta ter de passar a hora de almoço para que nasça um drama. - Se passou a hora de almoço, as cozinhas dos restaurantes fecharam, os outros clientes comeram a comida toda, não resta nada. Não podemos ir ao Mc Donalds porque faz mal. E agora, como vamos passar o dia sem almoçarmos? Porque é que isto aconteceu? Porque não consegui almoçar? Que quer dizer? Será que é um sinal? De Deus? Do Diabo? Das outras pessoas? Tenho que ler o horóscopo de hoje! Preciso de uma resposta. - Isto somos nós. Ou quase todos. Há quem vá imediatamente ao Mc Donalds. Isto lembra-me o que os outros animais que não nós os humanos fazem. Caçam e alimentam-se. Mesmo que tenha passado a hora de almoço. Existem muitas vantagens em não ter pensamento racional. E outras mais para o ter. Ter ou não ter, eis o drama.