segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

14


Fechas a porta do quarto à chave. Como se quisesses diminuir o ar que chega do outro lado. Dizes que a janela entreaberta é a única ligação que precisas de ter com o mundo. Porque eu não sou o mundo. Sou mais do que o mundo. Sou um aqueduto antigo que liga uma cidade a outra. Sou especial porque fiquei. Como os monumentos mais antigos.


- É isso, és especial porque de tudo o que partiu, tu ficaste.
- Porque quis ficar.
- Mas nem sempre fazemos o que queremos. E é nisso que eu admiro-te. O teres cumprido até ao fim a tua vontade. De ficares a meu lado.
- Cumpri-me a mim ao permanecer aqui.
- Mas o mundo não morreu. Sabes isso, não sabes?
- Sei. E se morresse e eu não desse conta, faria de mim uma má pessoa?
- Não, não. Podes esquecer-te de coisas importantes. Não podes é desfazeres-te sem delas te recordares.

Vivíamos naquele quarto. Menos horas do que lá fora. Para lá da porta fechada à chave. Saíamos de manhã, como todas as pessoas. Mas só olhávamos em frente. Não reparávamos em mais nada. Nem falávamos. Não. Existiam coisas que só fazíamos dentro daquele quarto. Porquê. Porque escolhemos assim. No trabalho ninguém sabia da outra nossa vida. Do desprezo quase que mecânico pelas restantes coisas. Haviam amigos. Não nos visitavam. Ninguém sabia onde morávamos. Ninguém tinha de saber. Fosse num palacete, fosse numa barraca. A nossa verdadeira morada pode ser secreta. Pode ser o único segredo a viver escondido. Sim, não é fácil de entender. Não o fizemos para ser fácil. ou diferente. aconteceu. Existem coisas que acontecem do nada. sem premeditação. há quem já não acredite nessa possibilidade. nós acreditamos porque foi o que nos aconteceu. foi bonito. por ser algo nosso.

- Hoje cozinhei.
- O quê?
- Tenho de te vendar os olhos. Hoje sou eu que te alimento.
- Não sei. Não insistas quando te digo que hoje é dia de abrir os olhos.
- Não insisto. Mas preciso que os feches.
- Porquê?
- Para melhor saboreares o que te dou à boca.

Decerto que não esperaria ficar tanto tempo. Foi uma surpresa. O tempo permitiu-se nosso. É raro quando isso acontece. O tempo nunca cede. Não oferece nada a ninguém. Connosco aconteceu. Todos os dias avanço mais um dia no calendário. adio a ida. porque haverá uma. eu só não quero que ocorra já. faltar-me-ia o espaço permanente. os dias dos olhos abertos em que teimosamente me alimentas. ou aqueles em que te ancoras em mim porque só assim consegues caminhar de um dia para o outro.

- No fundo, acredito que já não saberia estar aqui sem ti.
- E eu do outro lado de fora. sem ti.
- Sabes-me bem. mesmo quando não te sinto.
- idem.


6 comentários: