Os homens são uns parvos. Não se conseguem entregar por completo ao amor. Têm sempre o trabalho ou outra desculpa do género. Preocupam-se com o que não estão a fazer. Para eles o amor pode ser um inimigo. Um inimigo há muito derrotado mas do qual ainda têm medo. As mulheres são diferentes. Para elas o amor nunca é demais. Não atrapalha. É que não conseguem viver com uma alma só para elas. Por isso entre um homem e uma mulher há muitas vezes só uma coisa parecida com o amor, entre duas mulheres pode acontecer o amor inteiro. Basta ver duas mulheres a olharem-se nos olhos.
Isto são teorias. Convém ir às coisas mesmas. As palavras dela.
"O amor é incorrigível como o sol de pé e eu amo-te como o mar e a areia se deitam juntos. Nas praias interiores há uma ciência certa: as tuas ancas violentas, o teu cabelo frio.
É o tempo da seda entre os nossos vinte dedos embrulhados e os arquitectos afirmam ser preciso edificar um lugar novo para duas pessoas que estão a pensar tanto há tanto tempo com os corpos. Ouve-se só a água a atravessar a delicadeza da terra, é difícil acordar. Sais e entras pelas estações e os animais acompanham-te e eu digo que é o vinho, a metamorfose, que usamos de uma arte insensata, que comigo emigras na minha voz.
É por um nome estrangeiro que te dás enquanto ao longe o meu me escapa. É preciso chamar-te quase sem voz, estás despida escutando-te a ti mesma, descoberta. Eu sou a vítima caminhando, a minha boca impressa na doçura da tua boca, sem saber como fazer, dada à beleza repentina, inspirando o louvor. Os animais vêm comer às nossas mãos no silêncio intenso das montanhas, as noites trocadas e no meio há um espelho em que o amor se vê, aparecendo e logo indo. Enquanto permanecemos quietas, sem nada entender, uma criança anda pela terra de camisa branca aberta, desabotoada.
Sempre que penso em ti avanças em desordem no ar, e a minha memória aflita tem pressa de te alcançar, o sangue tem pressa em correr, e antes de alcançar tremo, sinto pavor em chegar. O meu coração é a criança a correr para ti e tu desapareces no interior da minha respiração, de uma dança elevada à solidão que faz arder o vento atrás de si. Sempre que penso em ti rogo pela ressurreição do tempo, pela subversão dos dias.
Meu amor, há pressa de chegar à alvorada, ser água a correr. Os animais estremecem e dormem mas eu não mais terei sono e vou despir-te tão lentamente como se tece o tecido de uma estação, os dedos a arder na doçura negra dos teus cabelos. E à volta tudo se ergue e respira e a criança passa à sombra do teu vento e fico nua numa vertigem que me sabe a sal e a mar a escutar os ruídos do amor, as duas mãos cegas atadas ao peito.
O que de ti guardo é um lenço de pétalas encostado ao rosto e o meu coração minado pelo bater das próprias pancadas, o teu corpo em silêncio pousada na delicadeza da geometria perfeita. Depois seguimos até ao fim deste tempo desperdiçado. É monstruosa a candura com que avanças, a tua mais secreta beleza, a tua mão de mulher a agarrar a minha camisa de menina.
Onde estás? A água dobra-se para que passes, as tuas ancas, o teu sexo imprimem-se na areia, voltas o rosto e perguntas: o que é?, e as palavras precipitam-se. As pessoas podem morrer por muito tempo, tu acreditas nisso. E depois podem voltar. Uma alma pouco é, duas almas são um mundo e caminhas quando te persigo a teu lado e me esqueço do meu nome, a minha boca queimada e sei que desapareceste de repente por detrás das colinas, sobre a água. Alguém vem dizer que tenho a mão direita sobre o teu coração tão branco e que também se morre de contemplar a morte, que além de grandioso é íngreme o paraíso.
É então que partes. Nesse instante, meu amor, anjos cegos cantam a minha morte. Vejo a luz que chega estrangulada ao lugar de uma paixão terrível. Partes e a tua despedida grava-se para sempre na areia, as coisas em volta respiram devagar, mais lentamente, com a tristeza. Partes e escrevem-se as primeiras letras na noite antiga e a lua nasce na minha camisa desabotoada e negra e de todos os lados ouço gritos e sangue a correr nos cabelos torturados. Partes e as crianças voltam a cabeça para reparar na mortal maneira de te inclinares na partida com um beijo, a minha camisa cheia de febre. Partes, meu amor, a pancada na água, a luz encurvada.
E sorris ainda para provar que somos eternos, mas eu sei que a idade não se faz milagrosa e ficamos presas de uma imagem em perigo voltada para o terror da paixão.
A tua blusa de perfil, as nuvens a afastarem-se, as mãos ocupando-se em ter dedos - era Maio ou Setembro - bom dia meu amor, até já meu amor, até logo meu amor, até sempre amor meu. A noite segue de um lado para o outro, as colinas afastam-se para dar passagem à tua ausência, tremo de febre, viramos ao de leve a cabeça uma para a outra, ao longe, depressa, como se já dormíssemos e ainda procurássemos adormecer, os pulmões cheios de água.
No escuro a pureza mostra melhor a sua maneira de ser, a tristeza bebe-se com as duas mãos juntas. Oiço a noite chegar como uma floresta que avança. Por favor, digo eu, quero levar comigo esta morte dos pés à cabeça. E entro pela floresta onde te deixei."
de Pedro Paixão
in Nos Teus Braços Morreríamos (1998)
Isto são teorias. Convém ir às coisas mesmas. As palavras dela.
"O amor é incorrigível como o sol de pé e eu amo-te como o mar e a areia se deitam juntos. Nas praias interiores há uma ciência certa: as tuas ancas violentas, o teu cabelo frio.
É o tempo da seda entre os nossos vinte dedos embrulhados e os arquitectos afirmam ser preciso edificar um lugar novo para duas pessoas que estão a pensar tanto há tanto tempo com os corpos. Ouve-se só a água a atravessar a delicadeza da terra, é difícil acordar. Sais e entras pelas estações e os animais acompanham-te e eu digo que é o vinho, a metamorfose, que usamos de uma arte insensata, que comigo emigras na minha voz.
É por um nome estrangeiro que te dás enquanto ao longe o meu me escapa. É preciso chamar-te quase sem voz, estás despida escutando-te a ti mesma, descoberta. Eu sou a vítima caminhando, a minha boca impressa na doçura da tua boca, sem saber como fazer, dada à beleza repentina, inspirando o louvor. Os animais vêm comer às nossas mãos no silêncio intenso das montanhas, as noites trocadas e no meio há um espelho em que o amor se vê, aparecendo e logo indo. Enquanto permanecemos quietas, sem nada entender, uma criança anda pela terra de camisa branca aberta, desabotoada.
Sempre que penso em ti avanças em desordem no ar, e a minha memória aflita tem pressa de te alcançar, o sangue tem pressa em correr, e antes de alcançar tremo, sinto pavor em chegar. O meu coração é a criança a correr para ti e tu desapareces no interior da minha respiração, de uma dança elevada à solidão que faz arder o vento atrás de si. Sempre que penso em ti rogo pela ressurreição do tempo, pela subversão dos dias.
Meu amor, há pressa de chegar à alvorada, ser água a correr. Os animais estremecem e dormem mas eu não mais terei sono e vou despir-te tão lentamente como se tece o tecido de uma estação, os dedos a arder na doçura negra dos teus cabelos. E à volta tudo se ergue e respira e a criança passa à sombra do teu vento e fico nua numa vertigem que me sabe a sal e a mar a escutar os ruídos do amor, as duas mãos cegas atadas ao peito.
O que de ti guardo é um lenço de pétalas encostado ao rosto e o meu coração minado pelo bater das próprias pancadas, o teu corpo em silêncio pousada na delicadeza da geometria perfeita. Depois seguimos até ao fim deste tempo desperdiçado. É monstruosa a candura com que avanças, a tua mais secreta beleza, a tua mão de mulher a agarrar a minha camisa de menina.
Onde estás? A água dobra-se para que passes, as tuas ancas, o teu sexo imprimem-se na areia, voltas o rosto e perguntas: o que é?, e as palavras precipitam-se. As pessoas podem morrer por muito tempo, tu acreditas nisso. E depois podem voltar. Uma alma pouco é, duas almas são um mundo e caminhas quando te persigo a teu lado e me esqueço do meu nome, a minha boca queimada e sei que desapareceste de repente por detrás das colinas, sobre a água. Alguém vem dizer que tenho a mão direita sobre o teu coração tão branco e que também se morre de contemplar a morte, que além de grandioso é íngreme o paraíso.
É então que partes. Nesse instante, meu amor, anjos cegos cantam a minha morte. Vejo a luz que chega estrangulada ao lugar de uma paixão terrível. Partes e a tua despedida grava-se para sempre na areia, as coisas em volta respiram devagar, mais lentamente, com a tristeza. Partes e escrevem-se as primeiras letras na noite antiga e a lua nasce na minha camisa desabotoada e negra e de todos os lados ouço gritos e sangue a correr nos cabelos torturados. Partes e as crianças voltam a cabeça para reparar na mortal maneira de te inclinares na partida com um beijo, a minha camisa cheia de febre. Partes, meu amor, a pancada na água, a luz encurvada.
E sorris ainda para provar que somos eternos, mas eu sei que a idade não se faz milagrosa e ficamos presas de uma imagem em perigo voltada para o terror da paixão.
A tua blusa de perfil, as nuvens a afastarem-se, as mãos ocupando-se em ter dedos - era Maio ou Setembro - bom dia meu amor, até já meu amor, até logo meu amor, até sempre amor meu. A noite segue de um lado para o outro, as colinas afastam-se para dar passagem à tua ausência, tremo de febre, viramos ao de leve a cabeça uma para a outra, ao longe, depressa, como se já dormíssemos e ainda procurássemos adormecer, os pulmões cheios de água.
No escuro a pureza mostra melhor a sua maneira de ser, a tristeza bebe-se com as duas mãos juntas. Oiço a noite chegar como uma floresta que avança. Por favor, digo eu, quero levar comigo esta morte dos pés à cabeça. E entro pela floresta onde te deixei."
de Pedro Paixão
in Nos Teus Braços Morreríamos (1998)