quinta-feira, 13 de maio de 2010

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O meu melhor amigo chama-se Cristiano. Conhecemos-nos no primeiro dia de aulas do 10º ano. Ele entrou e eu achei que ele podia ser um amigo. Nesse mesmo dia começamos a falar. Eu achava piada aquele ar meio envergonhado e confiado. Começamos a estar muito tempo juntos. Ele era estudioso, organizado e querido. Eu era aquela que só acordava e se começava a concentrar a partir das 11h da manhã. Estudava em cima dos testes e não sabia fazer resumos porque achava que tudo era importante. Ele fazia os resumos e dava-mos, e era daí que eu retirava boas notas. Bem, dos resumos dele e da minha inteligência. Estudávamos juntos mas nem sempre dava bom resultado porque eu desconcentrava-me rapidamente e em consequência ele também. Era o único rapaz em quem o meu pai confiava. Era o genro perfeito, dizia e ainda diz a minha mãe. Mas eu sempre soube que o Cristiano era gay, assim como eu. Confrontei-o muitas vezes depois de eu me assumir, mas ele dizia que não. E eu não acreditava mas continuava a gostar muito dele. No 12º ano tínhamos decidido ir os dois para o Porto, queríamos estar juntos. Ele para mim era família. O irmão que eu nunca tinha tido. Ele foi parar a Braga e eu a Lisboa. As férias era quando nos encontrávamos. Estávamos todos os dias juntos. No meu 1º ano da faculdade em Lisboa, o Cristiano ligou-me "C., tenho uma coisa para te dizer, eu sempre te quis dizer mas nunca fui capaz porque não aceitava, mas eu sou gay". E eu fiquei tão mas tão feliz. Porque ele finalmente o tinha aceite e eu as usual tinha razão. A partir daí, tornamos-nos mais próximos. Presentemente, o Cristiano voltou para a Madeira. E eu comecei a trabalhar. Portanto, é uma raridade vermos-nos. Passamos meses sem nos falarmos. Mas quando nos falarmos é como se nunca estivéssemos estado sem falar. São assim as amizades verdadeiras. Não se quedam ao sabor do tempo. E aguentam-se na distância, no silêncio. São impermeáveis.

Não me admirei quando hoje vi no meu telemóvel duas chamadas dele. Já não nos falamos desde o meu aniversário, portanto, era a altura certa para falarmos um pouco. Liguei-lhe e ele contou-me que tinha ido passar uns dias ao Porto, chegou ontem mas que já estava no aeroporto para voltar à Madeira. Perguntei-lhe porquê. "A minha tia morreu" e começou a chorar, enquanto os meus olhos se começavam a encher de lágrimas. Contou-me que a tia tinha sofrido um ataque cardíaco e que tinha caído. Que tentaram que ela voltasse cinco vezes e que agora estava em coma com a vida pelo fio. Portanto, para ele a tia já morreu. Morreu a partir do momento em que os médicos disseram que ela não sairia daquele estado. A partir de certa altura, eu não conseguia parar de chorar. Eu que estou há tanto tempo a controlar-me, desabei. Desabei por todas as razões. Por ele. Por mim. Porque é isto, que a morte traz, um desfalecer de tudo e mais alguma coisa.

O meu amigo Cristiano perdeu a mãe aos 6. O pai aos 17. E depois perdeu as duas avós e um padrinho. Restava-lhe a tia que era mãe e pai, o irmão e um tio portador do síndrome de down. As perdas fizeram do meu amigo, um homem seguro, forte e mais presente para a vida e para os outros. Uma pessoa dedicada ao seu caminho com o objectivo de vencer. E a ser bem sucedido. Não o fizeram mais amargurado. Mais triste. Mais pessimista. Não. Ele está pronto para a vida e para vencer qualquer obstáculo.

Mas já não chega?? Já não teve provações suficientes para os seus 26 anos? Agora o que ele mais quer é chegar à madeira, ir a correr para o hospital para segurar na mão da tia que está cá por um fio, nada mais que isso. Porque, mais uma vez, perdeu. Perdeu alguém que o amava, apoiava, adorava, tinha orgulho nele. E como não me perguntar se já não chega? Ele não faz mal a ninguém, é bom rapaz, sempre pronto a ajudar, sempre pronto a dar a mão, a levantar o astral. Então porque raio a puta da vida não o deixa em paz???

Peço desculpa pelo pessimismo instaurado nestas fracções de segundos, mas não consigo estar de outra forma. Por mais que juntemos vitórias, as perdas não se vão demorar a fazer chegar. Seja por via da morte, das circunstâncias da vida, desilusão. O que seja. As perdas mais cedo ou mais tarde acontecem. E porque é que não nos avisam? Quando somos crianças, não nos podiam dizer: a vida parece muito boa agora mas ela vai piorar, e aqueles que tu mais amas vão morrer um atrás do outro. mas não te preocupes, porque todos passamos pelo mesmo". E aí não poderíamos dizer: FUCK OFF?

Hoje não presto para mais nada. Vou trabalhar fingindo concentração até às 17h30. Depois representar o escritório num evento que será num barco, espero que parado. E depois arrastar-me até casa, enfiar-me na cama até amanhã de manhã.

Existem dias que nos pegam ao colo e nos colocam no fundo do abismo.

Este é um deles.

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